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Minha longa jornada até o Mundial de 70.3 em Chattanooga

Tenho várias músicas guardadas em um canto da minha cabeça para quando estou competindo... sempre corri ouvindo música antes virar triatleta. Até hoje adoro! Mas é algo que me permito apenas nos treinos longos de corrida grama confortável do domingo. 

Essas músicas têm algo que me ajuda a seguir em frente enquanto sofro, pode ser só o ritmo mesmo, ou então a letra ou parte dela ... No domingo 1º de outubro, durante a corrida do Ironman 70.3 do Rioque foi bem dura devido ao vento e o sol, Punks in the Beer Light da banda nova-iorquina Silver Jews não saía da minha cabeça.  

A letra é uma declaração de amor entre jovens bêbados e drogados, mas por fazer parte da minha playlist de corrida, duas partes se tornaram um mantra pra mim:  

If we'd known what it'd take to get here 
Would we have chosen to? 
(...) 
If it gets really really badif it ever gets really really bad... 
Let's not kid ourselves. It gets really really bad 

No final de agosto do ano passado no 70.3 de Foz do Iguaçu eu consegui uma vaga para o Campeonato Mundial que aconteceu em setembro deste ano em Chattanooga, Tennessee.  

Com a conquista da vaga meu técnico Victor Pereira periodizou todo meu treinamento para essa competição. Eu faria outras provas pelo caminho, mas estas seriam degraus para chegar no máximo da minha forma em 09 de setembro de 2017. Passei a me dedicar mais à natação que sempre foi minha disciplina mais fraca no triathlonChattanooga seria o ápice da minha temporada.  

As horas extras de natação me deixavam extremamente cansada, com dores musculares, vivia dormindo pelos cantos, mas eu tinha um objetivo, nada podia me parar.  

A não ser um acidente de bike... Era final de um treino longo, mas sensacional com meus dois queridos amigos de equipe, quando, por erro meu, bati na roda de um deles e fui pro chão... feio... Resumindo: estraguei o treino que estava sendo memorável por todos os melhores motivos. Tive convulsões no caminho até o hospital onde foi constatado que estava com clavícula e dedo mínimo da mão esquerdos quebrados.... Até hoje não me perdoei pela confusão e susto que causei aos dois. 

(A bike saiu praticamente ilesa. A segunda coisa mais importante depois que alguém cai é se a bike está inteira). 

Faltavam 3 meses pro Mundial...  

Imobilizei a clavícula e precisei operar o dedo. Fiquei 3 semanas sem poder fazer nenhum tipo de exercício físico pois com os pinos de fixação externos no dedo eu não podia suar excessivamente sob risco de infecção.  

Foram 3 semanas difíceis, estava de licença do trabalho e não podia treinar... não podia nem caminhar...  A única coisa que eu podia fazer era tentar não ganhar peso, enquanto ficava em casa lendo e assistindo TV. Então além de sentir imensa falta da minha dose diária de endorfina, eu passava fome, porque levou um tempo até meu corpo entender que eu não treinava mais 2-3h por dia. Ainda acostumada ao ritmo de treinos acordava sozinha de madrugada nos horários de sair para treinar e chorava… 

Meu marido fazia de tudo para me confortar: comidas gostosas, atenção e carinho. Alguns amigos foram me visitar, outros mandavam mensagens de incentivo e consolo... Eu não sentia dor física, mas todo esse carinho funcionava como analgésico para minha dor espiritual.  

Quando tirei os pinos do dedo, comecei a fazer rolo, spinning, caminhar na areia, tudo de tipoia, mas que se dane!, eu tinha de volta a minha dose diária de endorfina e calorias gastas para poder comer... e beber meu vinho!!! 

Eu não tinha desistido do Mundial! Na realidade aproveitei o tempo livre para montar uma viagem sensacional com meu marido pelos EUA depois da prova. Mas os objetivos mudaram completamente, agora eu iria lá para participar da festa e ganhar experiência para a próxima vez. 

Enquanto minha clavícula consolidava, ou assim eu pensava, meu técnico, Victor Pereira, foi aumentando o volume de treinos. Apesar de só pedalar indoor e caminhar na praia, com seis semanas de imobilização da clavícula eu já estava treinando mais horas por semana do que antes do acidente. 

Ao final do tempo de imobilização, faltando 6 semanas para o Mundial, descobri que minha clavícula não tinha consolidado, eu tinha uma condição não tão rara nesses casospseudoartrose. Isto significa que o corpo percebe a fratura como uma articulação e não tenta consolidar. Foi um balde de água fria: com tudo reservado para a viagem, eu iria para o Mundial somente para assistir...  

Mas o médico que me atendeu entende a paixão dos pacientes pelo esporte que eles praticam me falou: tenho vários pacientes que convivem muito bem com a pseudoartrose de clavícula deles, mas nenhum deles é triatleta. Vai lá e participa da sua competição, não tem nada que você faça lá que eu não consiga consertar facilmente quando você voltar, além disso é a prova de fogo que vai permitir decidir se você pode continuar sua vida normal, ou seja, continuar praticando triathlon competitivamente dentro da sua faixa etária, ou se será necessário operar. 

Então começou uma corrida contra o tempo, no dia seguinte à consulta tirei a tipoia e comecei a correr, cheia de fortes dores musculares nas costas, ombro, trapézio que ficaram enfraquecidos pela imobilização. Mas eu chorei de felicidade de poder voltar a correr na grama do Aterro. Na mesma semana voltei a pedalar na rua, nem olhei velocidade, potência, frequência cardíaca: eu só estava imensamente feliz de voltar a pedalar! Cheguei em casa com lágrimas nos olhos. Deu para perceber que sou uma criatura chorona... Meus óculos de natação nunca embaçam durante as provas porque sempre tem algumas lágrimas por dentro para lavar 

Com uma semana de fisioterapia, estava nadando, ou algo parecido com nadar. Foram várias aulas com a Virginia Pedrosa para ajustar meu nado e me dar alguma velocidade para tentar passar no tempo de corte da prova para a natação. Afinal a disciplina que eu mais tenho dificuldade foi a mais afetada e a que tive menos tempo para treinar depois do acidente. 

Quando eu finalmente cheguei em Chattanooga, descobri nas palavras da Helle Frederiksen, detentora do recorde da distância 70.3, que o percurso da prova era um dos mais difíceis que ela tinha competido: natação no Rio Tennessee com a maior parte do trajeto contra a correnteza, pedal com 680m de elevação acumulada e corrida com subidas curtas, mas agressivas. 

Eu sabia que sobreviveria ao pedal e à corrida, mas a natação me deixou muito preocupada, estando sem muita força para nadar, estava com medo de perder o tempo de corte de 1h para os 1900m. Fui testar o Tennessee duas vezes, uma com roupa de neoprene (wetsuit) e outra sem porque não se sabia se liberariam o uso de wetsuit por que a água do rio estava quente. E não saí muito confiante em nenhuma das duas vezes. 

No dia anterior à prova ocorre o bike check in, todo o material usado na prova é deixado pronto e no lugar certo. Ainda mais emotiva que o normal, coloquei minha bike no cavalete e entreguei minhas bolsas com o material. Na saída encontro a Luiza Cravo, ela abre aquele sorrisão e manda eu enxugar as lágrimas porque aquilo era um momento de festa, de comemorar! Eu estava imensamente feliz de estar lá, extremamente grata a todos que faziam parte disso: meu marido, meu técnico Victor, Virginia, meus amigos que estavam comigo no momento do acidente, mas também estava apavorada com medo de perder o tempo de corte da natação. 

Quando finalmente alinhei para dar a largada, entrei na água e fiz força, eu tinha que sair dali o mais rápido possível sem me matar. Apesar da pressão, eu consegui apreciar o fato de estar nadando no Rio Tennessee com as melhores do mundo na minha categoria, com o sol nascendo no horizonte (e ofuscando a gente enxergar as boias...). Passaram uma, duas pontes e finalmente chegou o trecho a favor da correnteza (que estava 3 vezes menos forte que o normal porque fecharam a represa hidrelétrica rio acima para a prova). 

Cheguei na escada e me puxaram para fora d’água. As pessoas que trabalham na prova, ajudando e orientando os competidores, são voluntários, que estão ali porque querem participar e ajudar essa grande festa. Eles são verdadeiros anjos da guarda! Quando vi as fotos da minha saída da água é que me dei conta de quantas pessoas me ajudaram: tinha pelo menos cinco me ajudando a tirar o wetsuit. Você totalmente perdido tentando se guiar dentro da transição e as pessoas quase te pegando pela mão e levando. Quando me dei conta colocaram na minha mão a bolsa com o equipamento para a etapa de pedal. E é muito legal porque tem gente de todas as idades trabalhando, até crianças!  


Então começou o que eu mais amo fazer! Pedalar!!!! O percurso saía da cidade e ia para a Lookout Mountain. Na subida, havia muita gente torcendo, gritando, tocando sinos, incentivando cada uma de nós que passava! Passamos por um lugar lindo chamado Fairyland, que parecia saído de um conto de fadas e onde as ruas têm nomes com Chapeuzinho Vermelho e Cinderela. Saímos do Tennessee e cruzamos a fronteira com a Georgia, descemos a montanha a toda e voltamos por estradas fechadas para a gente pedalar. 

A corrida também foi muito especial. Subidas e descidas o tempo todo! Passamos por dentro de um parque na beira do rio. Atravessamos duas pontes. Ao longo do caminho pessoas fantasiadas, com cartazes engraçados e de incentivo, rindo, acenando, felizes de poder fazer parte do evento. Apesar de estar fazendo muita força, eu me diverti muito mesmo durante toda a corrida.  

Cruzei a chegada e fui direto pros braços do meu marido, cheia de lágrimas nos olhos de imensa felicidade de ter completado a prova. Peguei minha medalha e minha cerveja, sentei na grama e começaram a chegar as mensagens dos meus amigos que estavam de longe torcendo por mim. Fiquei sabendo meu tempo e colocação por eles: 5h16min, 22ª colocada entre as 264 melhores do mundo na minha faixa etária. Fui uma das últimas a sair da água e na minha percepção ultrapassei poucas pessoas durante o pedal, então corri igual uma louca porque não queria ser a última colocada! 22ª era muito mais do que eu podia esperar! 

Mas o ciclo que comecei lá em Foz do Iguaçu não estava encerrado ainda! Depois de duas semanas maravilhosas rodando o Sudoeste dos EUA e seus parques sensacionais voltei pra casa 5 dias antes do 70.3 do Rio, prova que ganhei a inscrição e que vários amigos da minha equipe também fariam. Desci no Aeroporto do Galeão e fui para a academia fazer aula de spinning e nadar porque depois de 2 semanas de passeios no parque, bacon e cerveja, tinha pouco tempo para o corpo lembrar como é essa estória de nadapedalacorre. Não havia a mínima preocupação com performance, eu só queria participar e completar a prova sem sofrer muito e comemorar minha recuperação e ida ao Mundial com meus amigos de equipe. 

Pela primeira vez em uma prova eu estava relaxada, tranquila... Mas quando alinhei para a natação meu desembaçante natural de óculos estava lá... 

Vou encurtar um pouco essa estória que já está longa. Deve ter pouca gente lendo até aqui. 

Eu sou um animal de competição. Viro outra pessoa quando a corneta da largada soa. Tipo o médico e o monstro. Então essa estória de vamos passear e ver a prova de dentro acabou quando entrei na água! 

Fiz a força que tinha naquele dia durante a prova. O mar não estava exatamente calmo, achei ótimo, adoro sentir as ondas, a energia do oceano, e a temperatura da água estava perfeita. Havia vento contra em uma perna do pedal, mas ele ventava para todos, e eu estava competindo em casa, no meu quintal, conheço esse vento, conheço cada buraco da pista, cada quebra-molas da estrada do Pontal, cada curva da Grota Funda.  

Minha marcha traseira travou no último retorno para a chegada do pedal, parei e comecei a considerar empurrar a bike por dois quilômetros enquanto tentava resolver o problema. Consegui destravar, mas só entrava a marcha mais pesada. Beleza! Melhor que empurrar a bike correndo de sapatilha. 

Entrei na transição, esqueci da confusão com a marcha e aí coloquei meus pezinhos no chão...  

Encaixei uma boa cadência, um bom pace e fui! Vento contra, sol quente, não prestei atenção em nada disso... eu só ouvia vários amigos gritarem meu nome o que me dava ainda mais força. E a música do Silver Jews em repeat na minha cabeça...  

If it gets really really badif it ever gets really really bad... 
  Let's not kid ourselves. It gets really really bad 

Quem está olhando de fora pode achar que corro sem esforço depois de pedalar. Só parece, tem sempre uma hora que fica muito muito ruim mesmo. Mas o único jeito de enfrentar o sofrimento não é tentar bloquear, é se preparar para encará-lo e quando chegar a hora aceitar. Então não vamos nos enganar. Sempre fica muito muito ruim.  

If we'd known what it'd take to get here
 Would we have chosen to?  

Encerrei esse ciclo competindo em casa ao lado dos meus amigos, sendo a 1ª colocada da minha categoria, 11ª primeira colocada entre as 175 mulheres que competiram no 70.3 do Rio.  

Isso foi a cereja do bolo, o ponto culminante dessa jornada. Mas o maior prêmio, eu recebi ao longo do caminho. Meu prêmio foram as alegrias e dores dos treinos, o esforço dividido com antigos e novos amigos, a evolução, cada uma das provas em si. Eu amo o processo e não o resultado. 

Sim, eu faria tudo de novo.  






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