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Caminhando sobre Fogo

Em "How Bad Do You Want It?"  Matt Fitzgerald compara o sofrimento do esporte de alta performance com caminhar sobre brasas. E essa metáfora não poderia estar mais próxima da realidade.
Firewalking


Michael Atkinson, em seu artigo "Triathlon, suffering and exciting significance" publicado em 2008 na revista científica Leisure Studies, compara o treinamento e competições de endurance, os quais envolvem agredir o corpo físico além dos limites do conforto com formas religiosas de ascetismo, automortificação e autoflagelação. Durante o triathlon, os atletas ritualisticamente submetem seus corpos a uma punição tamanha que muitos atingem um estado limítrofe, um transe. Inicialmente, uma novidade na rotina e fisicamente exigente, o triathlon se torna ainda mais excitante quando os participantes usam suas habilidades de autocontrole para conseguir fazer mais força por mais tempo. Treinos em equipe são eventos sociais para aprender e ensinar sobre o sofrimento no esporte. A demonstração pública de controle durante essas sessões de autopunição amplifica a importância dessas atividades. 

O triathlon é uma comunidade que adora e admira a dor, triatletas contam com orgulho e ouvem com admiração estórias sobre a habilidade de aguentar e apreciar o sofrimento atlético. O medo de fracassar e se envergonhar perante seus pares, a agressividade da competição, a alegria da conquista e da vitória e a ansiedade coletiva criada quando corpos são levados ao limite são coisas muito enraizadas na experiência e consciência humana desde os primórdios dos tempos. Afinal desde os tempos das cavernas, grupos de humanos saem para caçar, pescar em mares tempestuosos ou guerrear. E um sentimento de comunidade muito forte é ao mesmo tempo pré-condição e consequência dessas atividades. 

Porém, muito antes do surgimento do esporte de endurance as pessoas têm participado voluntariamente em rituais extremos tais como caminhar sobre brasas, se chicotear ou se cortar e perfurar o corpo que, embora não muito diferentes psicologicamente de um triathlon de longa distância, fisicamente envolvem talvez maior dor. (Aqui eu falo talvez, porque como atleta amadora, eu mal consigo imaginar o nível de sofrimento que os atletas profissionais de ponta conseguem suportar). Mas por quê? Existe alguma razão evolutiva para isso? 

Segundo Dimitris Xygalatas, professor assistente do departamento de Antropologia da Universidade de Connecticut, parte da explicação pode ser dada pela teoria da dissonância cognitiva que afirma que quando o custo de atingir um objetivo é desproporcionalmente alto em relação às recompensas, essa discrepância (ou dissonância) cria um desconforto mental, que é resolvido atribuindo-se uma importância maior ao objetivo. Desta forma, pessoas que passaram por maiores dificuldades para entrar para um grupo dão mais valor ao fato de serem membros deste. Pense nos trotes na faculdade, nos treinamentos militares brutais, nas etapas de um concurso, ou, como os psicólogos Elliot Aronson de Stanford e Judson Mills do exército americano descobriram em um experimento, pessoas que levavam um choque muito forte antes de serem admitidas em um grupo davam mais valor a essa associação do que aquelas que tinham recebido um choque moderado. 

Outra explicação vem da neurociência. Rituais emocionalmente onerosos liberam hormônios tais como dopamina e endorfinas que estimulam os centros de recompensa do cérebro, transformando sensações de dor ou medo em algo positivo, o famoso barato dos corredores e a busca pela emoção dos atletas de esportes radicais. Isso explicaria o caráter viciante do triathlon e outros esportes de endurance, as pessoas se viciam no pico de adrenalina durante o sofrimento e na sensação de alívio quando cruzamos a linha de chegada. 

Mas Xygalatas acreditando que isto era apenas parte da resposta, resolveu testar uma hipótese do sociólogo francês Émile Durkheim na qual ele propõe que rituais coletivos criam uma espécie de "efervescência coletiva" que conecta as pessoas: imagine um concerto de rock, um estádio de futebol ou a largada de um Ironman. Segundo Durkheim, esses eventos coletivos resultariam em um alinhamento de estados emocionais que produziriam um senso de pertencimento e assimilação em todos os participantes que sentem e agem como um só indivíduo. Ou seja, esses rituais funcionam como uma "cola social". 

Xygalatas se perguntou se haveriam mecanismos biológicos ou psicológicos que apoiassem a hipótese de Durkheim e inovou ao utilizar um método diferente para avaliar o comportamento das pessoas em rituais. Ao invés de conviver com o grupo a ser analisado para obter insights que em geral são limitados, superficiais e sujeitos a viés pessoal, como faz a maioria dos antropólogos como ele; ou fazer como psicólogos em geral tratam a questão: levar as pessoas para um laboratório, um ambiente totalmente controlado, mas artificial, completamente desconectado do ritual em si, Xygalatas levou o laboratório até as pessoas durante os rituais.  

Ele utilizou frequencímetros para avaliar o grau de estresse daqueles que caminhavam sobre brasas, assim como da plateia de parentes, amigos e desconhecidos que participavam do ritual em uma cidade do interior da Espanha.  

Os resultados revelaram um grau surpreendente de sincronia na frequência cardíaca daqueles que caminhavam nas brasas e da plateia. Na realidade, era possível saber o quão próximas as pessoas eram: os padrões de frequência cardíaca da pessoa que caminhava sobre as brasas eram muito mais parecidos com o de seu cônjuge do que com os dos amigos, e mais similar ao dos amigos do que de desconhecidos. Quanto mais próximas as pessoas, maior a sincronia. 

Praticar triathlon e outros esportes de endurance realmente é como caminhar em brasas, os não iniciados podem nos olhar com admiração ou desdém por não conseguirem compreender porque nós nos voluntariamos avidamente e felizes a tanto sofrimento. Mas nosso ritual extremo nos preenche com sentimentos de realização e pertencimento e nos presenteia com amigos para o resto da vida. Algo presente no comportamento humano e com implicações socialmente positivas desde que a humanidade existe.

How Bad Do You Want It?: Mastering the Psychology of Mind over Muscle, Matt Fitzgerald 

Michael Atkinson (2008) Triathlon, suffering and exciting significance, Leisure Studies, 27:2, 165-180, DOI: 10.1080/02614360801902216   

Trial by fire. From fire-walking to the ice-bucket challenge, ritual pain and suffering forge intense social bonds 

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